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Encontra-se aberto, até ao dia 10 de Março, o prazo para envio de resumos e/ou propostas de criação artística, para o nº 8 da Revista Dobra, orientado pela palavra «Fragilidade».

folhas caídas —
quando os deuses se ausentam
surgem as ruínas


(Matsuo Bashô, traduzido por Joaquim M. Palma)


Talvez seja mais fácil encontrar fora da tradição ocidental um pensamento guiado pela fragilidade — pela evidência do que é frágil —, do que no interior daquilo a que chamamos a “nossa” cultura.
Roland Barthes falou do haïku nesses termos: uma arte “contradescritiva, na medida em que todo o estado de coisa é imediatamente, obstinadamente, vitoriosamente convertido numa essência frágil de aparição” (O Império dos Signos). É bem o que acontece com a metamorfose das folhas já caídas em vestígio súbito de um surgimento ruinoso: a frágil aparição de uma ausência. Neste sentido, a fragilidade não é sinal obrigatório da perda, da mortalidade ou da doença. Ela está do lado de dentro da vida no seu modo de manifestação. Uma espécie de segredo patente mas que é preciso fazer aparecer, ainda que seja contra a evidência sólida de tudo o que se dá como “coisa”. Ou como corpo vivo.

Todavia, para a arte, incluindo a literatura, esta direção de pensamento será talvez menos estranha do que para outras regiões do espírito ocidental. E daí que fosse um artista, Alberto Giacometti, a dizer: “Sempre tive a impressão ou o sentimento da fragilidade dos seres vivos, como se fosse necessária uma energia incrível para se manterem de pé.” Há qualquer coisa nas ficções de Kafka que advém de (ou propaga) uma impressão semelhante, páginas inteiras em que estar de pé ou movimentar-se ou agir — com a mais elementar das finalidades — parece requerer prodígios de energia e de técnica. Uma fragilidade para lá de todas as forças, dir-se-ia.

“Força” é palavra habitual no vocabulário filosófico e das ciências humanas, desde a psicanálise à ciência política. Não o é menos nas ciências físicas ou, pelo menos, numa parte delas. Terá sido esta proliferação de forças e de relações de força um sintoma, um modo de obscurecer a própria ideia de fragilidade, de obstar à enunciação da fragilidade ao menos enquanto problema? Haveria uma desconstrução da força que está em curso e em exercício no trabalho das artes? E na fragilidade que afeta por dentro a própria sobrevivência desse trabalho?

Nas palavras sobre o haiku, Roland Barthes sublinha, no entanto, o caráter obstinado e vitorioso da operação poética, ou seja, a maneira afirmativa de dizer ou inscrever o valor da fragilidade. Há algumas décadas, Gianni Vattimo avançou, a partir de Nietzsche e Heidegger, o programa daquilo a que chamou “pensiero debole” como condição preferencial ou necessária da pós-modernidade. Conviria reavaliar a pertinência, o alcance, o efeito dessa proposição. Pode a fragilidade afirmar-se como valor?

Duas maneiras de enunciar, muito diversas, sugerem que a pergunta talvez não seja absurda nem impertinente. A primeira, de Wittgenstein, forma uma das anotações manuscritas que deram substância ao livro póstumo editado com o título Cultura e Valor: “O que aqui escrevo pode ser material fraco; bem, nesse caso não sou capaz de trazer à luz as coisas importantes e grandes. Mas ocultas nestas observações fracas estão grandes possibilidades.” (Tradução de Jorge Mendes)

No outro extremo, a presente tentativa de induzir a pensar e a figurar o valor da fragilidade recorda mais dois haiku de Bashô, num gesto que também convida a considerar a fragilidade, hoje, das fronteiras literárias e a exemplar abertura de certa poesia ao pensamento que nunca se confina ao círculo humano.

 

O primeiro é um haiku de Verão:
sob a fragilidade do meu chapéu
usufruindo da frescura —
estou vivo!
O segundo é um haiku do final da Primavera:
no mesmo dia
nasceram Buda
e um pequeno veado


(Matsuo Bashô, traduzido por Joaquim M. Palma)
 

 

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